O crime de corrupção passiva está disposto no artigo 317 do Código Penal e consiste em “solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”. Posto isso, depreende-se que a corrupção passiva consiste num delito próprio – haja vista que só pode ser cometido por funcionários públicos – e em razão da função: deve ter relação direta com o cargo público ocupado para haver a consumação.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), no Recurso Especial n° 1.745.410 de 2018, estabeleceu uma interpretação controversa acerca do artigo 317 do Código Penal. A Sexta Turma do STJ entendeu que o crime de corrupção passiva é consumado mesmo que o ato seja estranho às atribuições do servidor. Nesse sentido, o STJ compreendeu que “o crime de corrupção passiva não exige nexo causal entre a oferta ou promessa de vantagem indevida e eventual ato de ofício praticável pelo funcionário público”. A justificativa para tal entendimento foi dada no voto da ministra Laurita Vaz, segundo a qual a expressão “em razão dela” presente no artigo 317 é uma “opção legislativa direcionada a ampliar a abrangência da incriminação por corrupção passiva”.[1]
Na contramão a esse entendimento do STJ, os juristas Netto e Breda compreendem que, para a existência de corrupção, é imperativo que o funcionário solicite a vantagem vinculando-a à prática de determinado ato de ofício. Ainda segundo os juristas, “a exigência da referência ao ato de ofício cria uma especialidade ainda mais coerente, pois somente o funcionário competente para a realização do ato de ofício pactuado ou prometido conseguirá violar a norma.”[2]. Assim, o Direito Penal brasileiro, ao contrário do entendimento da Sexta Turma do STJ, delimita a abrangência do tipo penal com o uso da expressão “em razão dela”.
No sentido dos juristas já citados, em artigo publicado no JOTA[3], os autores explicam que a expressão que remete à função vincula o sujeito ativo do delito ao exercício de seus poderes funcionais. Por essa razão, a interpretação do artigo 317 segundo a sistemática do Código Penal exige para a caracterização do delito a ocorrência da corrupção em razão das específicas atribuições da função pública, legalmente determinadas e diretamente ligadas aos atos de ofício. Isso porque, o exercício dos poderes administrativos inerentes à função está estritamente ligado aos atos de ofício. Caso contrário, segundo os autores, estaríamos diante de uma “lei penal em branco, carente de preenchimento normativo”[4].
Ademais, Netto e Breda[5] mencionam a confusão realizada pelo STF na Ação Penal n° 470 (“Mensalão”), que gerou um equívoco quanto ao ato de ofício: confundiu-se (i) a irrelevância da efetivação concreta do ato de ofício para a consumação dos crimes de corrupção (que se consumam com a solicitação ou aceite da promessa de vantagem); e (ii) a necessidade do ato de ofício como condição de existência do delito de corrupção. Ambas as hipóteses não se confundem e podem coexistir. Isso porque, ao interpretar o Código Penal de forma sistemática, tem-se que a corrupção ativa é a oferta ou promessa de vantagem, a qual deve guardar determinado ato de ofício como objetivo. Nesse sentido, é requisito para a corrupção passiva que a mera negociação (que corresponde a não efetivação concreta do ato) deve ter como objeto um ato de ofício (condição de existência do crime de corrupção passiva).
À vista disso, nota-se que a decisão do STJ no Recurso Especial n° 1.745.410 de 2018 está em desacordo não só com a melhor doutrina, mas também com os limites sistemáticos interpretativos do Código Penal brasileiro. A decisão da Sexta Turma traz uma desmedida ampliação da criminalização, que traz consequências negativas não somente para a alocação desproporcional de determinados casos no delito de corrupção passiva e para a dogmática penal por completo. Com isso, tal interpretação, conforme o entendimento de Netto e Breda[6], aumenta a dimensão da tutela de “uma espécie de moralidade pública”, afastando-se da literalidade do artigo 317, em claro desrespeito ao princípio da legalidade: nulla poena sine lege.
REFERÊNCIAS
BREDA, Juliano; NETTO, Alamiro Velludo Salvador. Parecer jurídico: “plausibilidade” de provimento de Recurso Especial interposto pela defesa de Luz INÁCIO LULA DA SILVA, em face de Acórdão proferido pelo Egrégio Tribunal Regional Federal da 4a Região, na Apelação Criminal sob n° 5046512-94.2016.4.04.7000/PR. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/recurso-lula-plausibilidade-isso-ele.pdf . Acesso em: 03 de jun. de 2022.
FREIRIA, Marcelo Turbay; FREIRIA, Thiago Turbay. A questão do ato de ofício. JOTA. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-questao-do-ato-de-oficio-20042018. Acesso em: 03 de jun. de 2022.
HORTA, Frederico. Elementos normativos das leis penais e conteúdo intelectual do dolo: da natureza do erro sobre o dever extrapenal em branco. 1ª ed. São Paulo: Marcial Pons, 2016.
STJ. Corrupção passiva é consumada mesmo que o ato seja estranho às atribuições do servidor. 04 de out. de 2018. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias-antigas/2018/2018-10-04_08-01_Corrupcao-passiva-e-consumada-mesmo-que-o-ato-seja-estranho-as-atribuicoes-do-servidor.aspx. Acesso em: 03 de jun. de 2022.
[1] STJ. Corrupção passiva é consumada mesmo que o ato seja estranho às atribuições do servidor. 04 de out. de 2018. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias-antigas/2018/2018-10-04_08-01_Corrupcao-passiva-e-consumada-mesmo-que-o-ato-seja-estranho-as-atribuicoes-do-servidor.aspx. Acesso em: 03 de jun. de 2022.
[2] BREDA, Juliano; NETTO, Alamiro Velludo Salvador. Parecer jurídico: “plausibilidade” de provimento de Recurso Especial interposto pela defesa de Luz INÁCIO LULA DA SILVA, em face de Acórdão proferido pelo Egrégio Tribunal Regional Federal da 4a Região, na Apelação Criminal sob n° 5046512-94.2016.4.04.7000/PR. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/recurso-lula-plausibilidade-isso-ele.pdf . Acesso em: 03 de jun. de 2022. P. 11.
[3] FREIRIA, Marcelo Turbay; FREIRIA, Thiago Turbay. A questão do ato de ofício. JOTA. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-questao-do-ato-de-oficio-20042018. Acesso em: 03 de jun. de 2022.
[4] HORTA, Frederico. Elementos normativos das leis penais e conteúdo intelectual do dolo: da natureza do erro sobre o dever extrapenal em branco. 1ª ed. São Paulo: Marcial Pons, 2016, p. 84.
[5] BREDA, Juliano; NETTO, Alamiro Velludo Salvador. Parecer jurídico: “plausibilidade” de provimento de Recurso Especial interposto pela defesa de Luz INÁCIO LULA DA SILVA, em face de Acórdão proferido pelo Egrégio Tribunal Regional Federal da 4a Região, na Apelação Criminal sob n° 5046512-94.2016.4.04.7000/PR. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/recurso-lula-plausibilidade-isso-ele.pdf . Acesso em: 03 de jun. de 2022. P. 14.
[6] Ibid., pp. 15 e 16.